segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Meu inimigo sou eu

Paulo Werneck

Noé, Mosaico na Basílica de São Marco, Veneza
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Noah_mosaic.JPG

Com a destruição trazidas pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro veio também o debate sobre causas e culpados.

Lembrei-me de um pequeno livro, "Meu inimigo sou eu", escrito por Yoram Binur, um jornalista judeu de Israel, que se fez passar por árabe para sentir na pele, correndo risco de vida, os malfeitos dos judeus contra os árabes. Não eram poucos.

Não fiquem agastados os judeus comigo, primeiro porque o jornalista também é judeu, corajoso diria ainda, mas também porque nem foi o primeiro livro nesse sentido: "Cabeça de Turco", do alemão Günter Wallraff, relata como os alemães tratam (ou tratavam) os imigrantes ilegais, fazendo-se passar por um. Esse livro não li. Faltou-me coragem.

O que tem esses livros a ver com as chuvas e as enchentes? A coragem de tirar a culpa do outro, do árabe, do imigrante ilegal, e ver a parcela de responsabilidade que o próprio povo tem pelo que acontece no planeta.

No caso das chuvas há certamente uma parcela de responsabilidade dos governos nos seus efeitos desastrosos: falta de prevenção, falta de fiscalização. Entretanto é muito fácil colocar a responsabilidade nos outros - no caso no governo - e ir dormir com a consciência tranquila do dever cumprido.

Infelizmente as coisas não são assim e não serão resolvidas por nenhum passe de mágica.

Cientistas estão identificando o fenômeno do aquecimento global, mas os intere$$eS econômicos evitam a aplicação das medidas corretivas adequadas. Evitam com o nosso apoio, pois queremos continuar aumentando o nosso conforto, andando de carrão, consumindo desbragadamente, destruindo o planeta.

A ocupação ilegal das encostas também é um problema, em parte decorrente da injusta distribuição de riqueza neste país.

O aumento dos efeitos nocivos das chuvas pode ser decorrente da redução da permeabilidade dos solos, resultado da ampliação de estradas, calçadas, estacionamentos, quintais cimentados, casas e edifícios.

Quando comecei a frequentar o rio Macacu, ele enchia devagar e permanecia cheio muito tempo, porque as águas das chuvas penetravam o solo e iam escoando lentamente para o rio. Agora aumenta e reduz a vazão muito rapidamente: a água vai direto para o rio, não sendo absorvida pela terra.

Disso tudo, a conclusão é que nosso inimigo somos nós mesmos. Temos que mudar nossa relação com o planeta: consumindo menos, reduzindo a produção de lixo (fora descartáveis!), possuindo menos automóveis (ou pelo menos menos potentes), procurando aumentar a justiça social.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Consumidor sem consumir é lixo

Paulo Werneck
Babak Gholizadeh: Grande Bazar, Istanbul
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Bazaar

Fui a um templo do consumo moderno, o shopping center, com meu filho. Ele precisava de um par de tênis, eu queria um livro e poderíamos lanchar.

Tênis, neca. Não havia o número desejado. Os vendedores insistiram em que ele comprasse um número acima, mas, teimoso, irredutível, se recusou a comprar um par de outro tamanho, diferente do seu.

Também não encontrei o que procurava mas, solto numa loja de livros, acabei encontrando um Dashiell Hammet que não havia relido ainda. Agora sou intelectual, e como todos os intelectuais que se prezam, só releio.

O lanche não teve erro. Encontramo-nos no Chez Michou, que não promete mundos e fundos mas faz corretamente o que se propõe a fazer.

Alguns crepes e chopes depois, hora de voltar para casa. Nesse momento, lojas fechadas, conta paga, deixei de ser um consumidor e tornei-me um ser desimportante e descartável, e, como todos os demais temporariamente não consumidores, fui obrigado a sair pelos fundos e caminhar por uma longa calçada escura até a avenida Lauro Sodré, onde passam os ônibus e os táxis.

Demorarei a voltar a seu um consumidor no Rio Sul. Deixo registrado meu agradecimento aos administradores do shopping pela economia que farei a partir de hoje. Talvez os lojistas que pagam polpudos aluguéis à Brascan não fiquem tão satisfeitos, mas, que fazer, não se pode agradar a todos...

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Viralatas preguiçoso

Paulo Werneck
Morris: Rantanplan

Não sei qual é o cão mais desmiolado do mundo dos quadrinhos, minhas preferências alternando-se entre Rantanplan, do Lucky Luke, e Odie, companheiro de aventuras do Garfield.

Não é de cães, reais ou fictícios, que pretendo falar, e sim da nossa dobradinha nacional: o complexo de viralatas associado à falta de qualquer curiosidade para criticar minimamente a expressão material desse complexo.

Recentemente um conterrâneo postou um lacônico comentário (no "Conversa Afiada", blogue do Paulo Henrique Amorim), que dizia simplesmente "Viva o Brasil, último país a abolir a escravatura!".

Infelizmente não foi o primeiro nem será o último a dizer tal absurdo.

Se pesquisarmos na Wikipedia obteremos as seguintes datas posteriores à da nossa Lei Áurea: Coréia 1894; Madagascar 1896; Zanzibar 1897; China 1910; Tailândia 1912; Nepal 1921; Afeganistão 1923; Iraque 1924; Irã 1928; Serra Leoa 1928; Nigéria 1936; Etiópia 1942; Alemanha Nazista e Japão (nos campos de trabalhos forçados) 1945; Qatar 1952; Tibet 1959; Arábia Saudita 1962; Iêmen 1962; Emirados Árabes Unidos 1963; Omã 1970; Mauritânia 1981.

Podemos observar, por exemplo, que no mítico Tibet havia escravidão sob o governo do Dalai Lama, extinta pelos chineses que o invadiram.

Podemos notar que os civilizados e europeus alemães, bem como os japoneses, com suas tradições zen e códigos samurai, não se vexaram de escravizar pessoas durante a II Guerra Mundial.

Alguém poderá alegar que a Wikipedia não é confiável, mas Alberto da Costa e Silva, autor de "A enxada e a lança", entre tantos outros livros, confirmou algumas dessas datas no prefácio que escreveu para "Formação da Diplomacia Econômica no Brasil", de Paulo Roberto de Almeida.

O fato de termos demorado tanto a acabar com esse regime indigno, que prejudicava não só os cativos, como também nosso desenvolvimento econômico, não justifica a repetição acrítica de inverdades.

domingo, 2 de janeiro de 2011

O Olho de Thundera

Paulo Werneck

Carrasco e rei discutem sobre cortar a cabeça do gato de Cheschire
Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865)
Lewis Carrol
Fonte: www.fromoldbooks.org

Tudo começou com um gato estressado e perdido num corredor de um edifício de apartamentos, sem comida e sem carinho, na véspera do ano novo. Estava agressivo - pudera - e precisava ser levado para algum outro lugar. As tentativas amadoras não estavam surtindo efeito, o gato ficando ainda mais estressado e agressivo. Alguém, ou o gato, acabaria ficando machucado.

Ligo para 156, teleatendimento da Prefeitura de São Paulo, a mais rica e poderosa cidade do Brasil. Uma simpática voz feminina atende, mas nada pode fazer. A prefeitura só remove animais que estejam na rua ou tenham causado ferimentos comprovados. Quem poderia resolver o problema? Não sabe. O telefone dos bombeiros? Também não sabe. Não é a função dela. Pergunto o que fará se a sala de teleatendimento da prefeitura pegar fogo. Também não sabe, óbvio.

No telefone público está registrado o telefone dos bombeiros - 193 - o mesmo em todo o Brasil. A voz masculina que atende é igualmente atenciosa, os bombeiros também não podem ajudar nessa questão, mas indica  outro telefone que poderá ajudar. Não foi preciso, pois ao voltar ao prédio uma faxineira com jeito e um cobertor conseguiu levar o gato para o jardim, de onde ele seguiu seu destino. Um belo gato negro.

Recordo o Olho de Thundera, com visão além do alcance e fico triste ao constatar quantas pessoas se limitam ao estritamente obrigatório. Num mundo em que as fronteiras estão desaparecendo, se autorestringem ao mínimo, à previsível novela, à vidinha medíocre, abandonando qualquer pretensão de ampliação de seus horizontes culturais e, por tabela, profissionais. Tão triste, nas vésperas de um ano que se abre pleno de desafios e oportunidades.